Nos últimos dias, a comparação entre dois sobrevoos, um sobre as vastas áreas agrícolas de Decatur, em Illinois, e outro sobre Tapurah, no Mato Grosso, escancarou uma diferença estrutural na forma como nações líderes na produção de soja organizam o território rural. Enquanto no Midwest norte-americano quase não se enxergam manchas de vegetação nativa dentro das propriedades, no Mato Grosso elas compõem parte permanente da paisagem, com blocos de mata preservada intercalados entre lavouras e pastagens. Esse contraste visual é apenas o ponto de partida para um debate mais profundo: como diferentes legislações moldam o uso da terra e a presença, ou ausência, de áreas naturais dentro das fazendas? Brasil, Estados Unidos e França representam três modelos distintos que ajudam a explicar por que duas regiões produtivas podem apresentar cenários tão diferentes, inclusive nos níveis de preservação ambiental que cada país mantém.
O Brasil e o modelo de preservação obrigatória
O Brasil possui uma das legislações ambientais rurais mais rigorosas do mundo. O Código Florestal determina que todo produtor rural mantenha uma porção da propriedade com vegetação nativa, com percentuais que variam conforme o bioma, além da obrigatoriedade das Áreas de Preservação Permanente ao longo de rios, nascentes, encostas e outras zonas sensíveis. Essa combinação explica por que, ao sobrevoar o Mato Grosso, é possível observar mosaicos de mata fechada mesmo em propriedades altamente tecnificadas.

Esse modelo resulta em um dos mais altos níveis de preservação entre grandes produtores agrícolas. Hoje, cerca de 66% do território brasileiro permanece coberto por vegetação nativa, segundo dados do MapBiomas, e mais de 20% dessa preservação está dentro de propriedades privadas, algo incomum no cenário internacional. Na prática, o Brasil se destaca como o país que mais preserva vegetação nativa dentro da área produtiva, graças à legislação que obriga essa manutenção.
Não se trata de uma tradição espontânea, mas de décadas de debate jurídico, político e científico que consolidaram um sistema capaz de conciliar produção em larga escala e conservação ambiental. É um modelo de preservação alto e permanente, inserido diretamente no coração da atividade agrícola.
Os Estados Unidos e a autonomia do proprietário rural
Nos Estados Unidos, o cenário é quase inverso. Embora existam programas públicos de conservação, como o Conservation Reserve Program, não há uma exigência nacional que determine percentuais mínimos de vegetação nativa dentro das fazendas. Na prática, áreas agricultáveis costumam ser ocupadas integralmente, especialmente em estados como Illinois, que lidera a produção de soja norte-americana.

Essa estrutura territorial faz com que os EUA apresentem um dos menores níveis de preservação dentro das propriedades rurais entre as grandes potências agrícolas. Em grande parte do Meio-Oeste, áreas inteiras foram convertidas em produção contínua de milho e soja, restando menos de 5% de vegetação nativa em muitos condados. No total, apenas 14% do território norte-americano está sob algum tipo de proteção formal, a maioria em áreas públicas, não privadas.
As reservas naturais ficam, em regra, restritas a parques, áreas públicas ou regiões de baixa aptidão agrícola. O modelo americano privilegia a autonomia do proprietário: a decisão de manter ou não fragmentos naturais dentro da fazenda é voluntária e guiada por fatores econômicos. Isso resulta em baixa preservação integrada ao uso agrícola da terra.
A França e o modelo europeu de controle sem percentuais fixos
A Europa adota um modelo intermediário. A França, em particular, possui instrumentos legais que restringem o desmatamento e exigem planos de manejo florestal, mas não define percentuais obrigatórios semelhantes à Reserva Legal brasileira. O Código Florestier exige autorização prévia para qualquer conversão de área florestal, e essa autorização pode vir acompanhada de exigências de compensação, como replantio ou preservação de áreas equivalentes.

A França mantém cerca de 31% de seu território coberto por florestas, índice relativamente alto dentro da Europa Ocidental, embora grande parte dessa vegetação resulte de reflorestamento planejado ao longo do último século. A proteção é significativa, mas distribuída no território, e não concentrada dentro de cada propriedade rural, como no Brasil.
O Plano Simple de Gestion, exigido para diversas áreas privadas, e a Obrigação Real Ambiental reforçam esse modelo, limitando a conversão de áreas naturais. Assim, o país sustenta um nível intermediário de preservação, superior ao dos EUA, porém distante da combinação brasileira de vegetação nativa e produção integrada.
Paisagens moldadas por sistemas jurídicos distintos
A comparação entre Mato Grosso, Illinois e França evidencia que as paisagens agrícolas não são resultado apenas de cultura, clima ou perfil econômico, mas principalmente do arcabouço jurídico que orienta o uso da terra. No Brasil, a presença de vegetação nativa dentro das propriedades é um dever legal, o que explica seu alto índice de preservação rural. Nos Estados Unidos, essa decisão é inteiramente voluntária, o que se traduz em baixa preservação na paisagem produtiva. Na França e em boa parte da Europa, há limites e contratos ambientais que restringem o desmatamento, mas sem determinar porcentagens fixas, configurando um cenário de preservação intermediária.
Nenhum desses modelos é isento de desafios. O Brasil enfrenta pressões por expansão ilegal e dificuldades de fiscalização; os Estados Unidos convivem com a histórica redução de habitats nativos no cinturão agrícola; e a Europa depende frequentemente de compensações privadas e de mecanismos burocráticos para manter remanescentes de biodiversidade. Ainda assim, compreender essas diferenças é essencial para qualificar o debate público e evitar comparações superficiais.
Autor: Lucas Lopes | A Granja










